terça-feira, 18 de setembro de 2012

Babaca

 Ei. Por que você é assim... Tão... Excluída? Você fica quase sempre sozinha nessa faculdade, em todos os períodos.
  Nada de interessante.
 Mas, o que seria?
 Traumas passados.
 Gosto de atrocidades não interessantes. Pode falar.
 Quando era pequena, minha vida foi drasticamente ruim. Só conheci gente que não prestava. Não quero correr o risco, de novo.
 Vida ruim? Ruim como? 
 Meu padrasto batia na minha mãe e me violentava sexualmente. Por isso virei lésbica e excluída. Peguei trauma. 
 Ah, tá brincando...
 É. Tô sim.
 Tá, é? Mesmo, então?
 Não.
 Puxa, desculpe. Conta mais...
 Já que insiste... Minha mãe casou muito cedo com meu pai, ele teve câncer e morreu um pouco depois de eu nascer. Então ela se juntou com Célcio, meu ex-padrasto e tal. Os pais dela à obrigaram, porque ele era filho do conhecido do primo do amigo do meu tio. Depois de casar no papel, minha mãe descobriu que ele era bandido. Depois de um tempo juntos, todas as noites viraram uma só rotina completamente decorada; eles discutiam e tudo acabava com minha mãe cheia de hematomas. Meu corpo começou à se modificar cedo demais. Depois ele começou à ir no meu quarto sempre que desejava, mas eu era muito pequena, e não entendia quase nada, só chorava e pedia pra parar, geralmente ele fazia isso enquanto minha mãe faxinava a casa da patroa. E ele me ameaçava em relação à se caso contasse disso pra alguém. Aconteceu muita coisa depois e no fim ele matou minha mãe com dois tiros nas costas e um deles pegou no meu braço, por isso não tenho esse aqui, o esquerdo. Foi amputado. Mas o cara tá preso agora, há uns anos.
 Meu Deus. Você é forte, menina. Tu ainda sofre por isso tudo? Quero dizer, foi mó barra, né?
 Não, seu babaca. Tô tirando com a sua cara. Isso tudo nunca aconteceu, sou lésbica porque homem é uma merda, assim como você, e já nasci sem um braço. Eu sou sempre excluída nessa faculdade porque aqui só tem gente chata e desnecessária, bem parecidas contigo, inclusive. Agora cai fora daqui e me deixa ouvir minha música em paz. Imbecil.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Bossa nova, ou velha demais

 Você sabe minhas maiores desventuras. Meus maiores segredos. E eu? Eu não sei quase nada de ti. Não sei nada de ti além de que você é a guria que me faz prender a respiração cotidianamente. Desviar o olhar por esforço. Não sei nada de ti além de que faz tempo que sei que você existe - pra  mim e pro mundo. Você existe mais do que existe no viver. Você existe, e é vista. 

Já escurecendo, o sol se pôs dentre as montanhas. Saio pela rua. A cada lugar que passo me lembro de cada momento que deveria ter sido esquecido, mas não foi. Minha força de vontade nunca foi tão falha: quero esquecer-te mas não me deixo fazê-lo. Parece que me lembrar de tudo o que me tortura me faz mais viva. É como se eu tivesse o que contar... E contar que alguma coisa na vida eu já senti, além do vazio.
São muitos escrúpulos, tudo o que senti. 

(Um tempo depois)


Após rodar por aproximadamente meia hora ao redor de lugares pseudo-familiares, brevemente chego à sua casa, cuja janela do quarto está aberta - aquele calor extremo. E pela janela te observo, chego de mansinho, como sempre. Você e sua mania de se concentrar no espelho, planejar seus discursos na mente e esquecer do mundo.

 Para de olhar pra esse espelho, e ve se olha pra janela... Oi, cheguei. É bom estar aqui. - sorrio, mas querendo refletir sobre o que conclui.
– Não tenho tempo de olhar pra janela. Tenho uma vida inteira à estudar e muita Bossa Nova pra absorver (risos).
Tiro meu papel amassado do bolso, abro e me torno parte do escrito, em forma de voz:
  O seu tempo está passando. Tu vê? O meu também. Logo chego nos vinte e um. O mundo se acaba, Laura, meu amor! As pessoas se transformam. As pessoas se tornam indivíduos calados. Todas perdem a voz. Tornam-se mudas por opção. Isso é tão estranho. - Paro pra tossir, e então apoio meus braços na janela, te observando. - Sei que tu sabe que jamais cursaria direito. Te digo agora que dessa vez eu peço que apenhas venha. E não vá. Eu não quero mais ter que te esquecer todas as noites antes de dormir, pra dormir em paz e não imaginar tudo o que já se passou, toda aquela turbulência. Assuma que me ouvir sussurrar todas aquelas músicas é uma delícia, e que você quer permanecer o fazendo. Mas como você sabe, essa história é velha. E eu quero ver você se aventurar por outros gêneros musicais e conhecer as paisagens e cores que o dia tem. Você precisa decidir, porque nem só de faculdade e bossa nova se vive. Na verdade, desse jeito, se vive bem infeliz. Vamos juntas?






  Não. Eu não tenho tempo pra amar.